Sunday, November 23, 2014

Lírios aos rebeldes que falharam

Sepulcral era o silêncio que dizimava palavras em sua boca, horas depois exumadas em murmúrios desapercebidos que voavam invisivelmente como pó no vento do profundo esquecimento. Sua existência não era desapercebida, porém, também não lembrada. Como uma estátua em decadência à ser tombada pelas drogas; rebeldes dominantes, o laçavam para lançar seus pedaços ao chão, como escravagistas da pobreza natural de cada migalha do seu corpo.
Há tempos enxergava ele, em cada placa, em cada letreiro, em cada muro, em cada pixação, em cada poça d'água, em cada nuvem, em cada olhar, em cada movimento, um subliminar umbroso que o guiava ao padecimento sequioso de sua entidade e à penúria do cônscio deslembrado. Sinais os seus, tão evidentes para o mundo quanto era evidente o íntimo dos símbolos à penumbra de sua própria visão.
O que nos atava, além do nó de duas marionetes entrelaçadas pelo vício, era o halo do exílio da associação invasiva que a obrigatoriedade das funções sociais exigiam. Éramos nós contra o mundo.
Em alto volume, como quem não queria ouvir seus próprios pensamentos, porém expressando uma realidade inevitável, tocava Tupac em seu stereo, justamente quando a sombra minha invadia pela manhã o seu apartamento, antes do meu corpo, rastejando pela fenda, debaixo da porta, seguida pelo amontoado ser disforme escorado no batente.

"Wake up in the morning and I ask myself, Is life worth living?
Should I blast myself?"

Sarcasticamente ecoava pelo vazio apartamento, contando conosco dentro.
Uma garrafa de uma bebida vagabunda, alguns baseados e uma sacada do 12° andar com alguns pés de maconha foram o suficiente para que ele extraísse o sumo amargo do próprio cônscio debilitado, olhando fixamente da sacada para o térreo, deixando respingar a frase que despencava de lá de cima "Toda vez que eu olho para baixo, sinto vontade de pular", e tapou sua boca com um gole de bebida, deixando o silêncio de uma confissão tomar conta do calor do meu corpo, fazendo de mim uma estátua de gelo, assim como ele, à desmoronar pelo calor do irrelevante brilho da manhã.
Sua mãe o internou em uma clínica de reabilitação, e eu, com a convicção de suas palavras cravadas em meu peito, escrevi uma carta de consolo, de excluso para excluso, na tentativa de esboçar no papel, meu opaco para sua escuridão, dividindo a luz da esperança como se divide um fóton.
Dois meses se passaram e eu ainda tinha a carta dentro de uma gaveta, coberta por embalagens de drogas e promessas. Finalmente saia ele da reclusão.
Pude conceber a expectativa de consertar o erro de nunca ter lhe enviado aquela carta cheia de identificações, corrigindo com um abraço o tempo em que não pudemos consolar um ao outro compartilhando histórias, dores, drogas...
Me disseram que o viram de costas passando pelo edifício onde morava. Eu estava a espera do meu parceiro de dores e drogas, ansioso, com o brilho do halo que nos unia.
Sexta-feira, 17 de abril de 2008, aproximadamente 10h da manhã, meu pai me acorda depois de uma madrugada perturbada, de desentendimentos entre eu e eu. Era um cara na linha que disse "mano, tá ligado o Hart? Ele morreu". Eu desabei e me tornei tempestuoso enquanto o cara aguardava na linha. Ele disse que meu amigo havia cometido suicídio. Tinha se enforcado com uma das gravatas das quais fingiamos procurar emprego, no banheiro da própria casa. Ele havia me avisado. Eu levei a sério, mas imaginava que a carta que eu havia escrito poderia curar sua solidão até a próxima dose, onde encontraria ele, mesmo na dor, sua zona de conforto.
Eu velava meu amigo 7 dias antes do meu aniversário de 21 anos.
Sua semblante emitia serenidade, mas as marcas em seu pescoço exibiam o horror de seus últimos momentos... sua hora mais escura.
Seu caixão ia descendo até o profundo; imperscrutável questionamento que faziam as pessoas, em seguida, repousando no fundo da sua cova.
Antes da primeira pá de terra, lancei um lírio branco por cima do seu esquife de madeira, uma lágrima caiu e eu dei as costas para nunca mais nos vermos.
Usar ou não usar drogas doía na mesma intensidade pra ele. Mal compreendido pelos outros, mas não por mim.
A carta eu queimei.
As lembranças?
Eu guardei.

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