Monday, August 15, 2016

Quase...

Eu nasci bem próximo de ser rico.
Nasci na favela do Real Parque. Bairro divisa com o Morumbi; um dos bairros mais ricos da América Latina.
Toda a minha vida vivi entre bordas, contrastes e divisas. Eu fui sempre um "quase" nos capítulos diários de uma vida condenada ao "por um fio" ; ao incompleto.
Antes de tudo, quando se vive em cima do muro sendo um "quase", existe uma regra básica que se aplica até aos mais desprovidos de cônscio, cujo não não tem nenhum resquício de senso crítico:
"Enquanto poucos tem bastante, muitos não tem nada".
Eu digo que não há necessidade de cônscio, pois quem percebe é quem tem sentidos. A pele que passa o dia lavando vidros no farol, debaixo de 35*C, sente. O nariz que passa o dia sobre o tanque inalando água sanitária, sente.
Eu tive senso crítico, tive meus olhos, literalmente e de base analógica desfrutando inocentemente das vulgares imagens dos bastidores da minha vida.
Senti nos ouvidos o choro da minha mãe pós estuprada, a dor de não querer existir, e dos imensos boletos bancários que a mantinham obrigatoriamente viva por sentir a obrigação de fazer de dois moleques marginalizados, homens com capacidade de não somente mudarem a si mesmos, mas mudar tudo ao seu redor.
Porém, sentir na pele, sem observações pseudointelectuais de um moleque de 16 anos, doeu no íntimo, literalmente, por todas as vezes em que eu queimava os dedos nas chamas dos isqueiros, fumando crack, quando meus lábios rachados pela fissura (nos dois sentidos) secreçavam pus; quando meu estômago se contraia e eu vomitava o amarelo da bílis nas crises de abstinência; quando recebia coturnadas da polícia facista nas costas, e coronhadas na cabeça; quando meu nariz jorrava sangue de tanta cocaína...
Eu quase não seria um frustrado, se não tivesse sido espancado aos 3 anos. Eu quase teria sido mais um número na FEBEM comendo marmita azeda se eu não tivesse brecado a facada no peito do pai estuprador, aos 10, enquanto ele dormia bêbado e mijado. Eu quase não teria sido um viciado se não fosse tão normal ser um alcoolatra dentro da "família". Eu quase pude ser um adolescente com experiências sexuais até "divertidas", se eu não estivesse me prostituindo em troca de bebida barata para uma velha pedófila.
Eu quase pude ter um grande amor chamado "CB", se a vontade de beija-la tivesse sido maior do que a vontade de beijar um cachimbo cheio de cinzas. Eu quase rodei no tráfico, quando a PM invadiu a biqueira onde eu estava prestes a entrar pra comprar 15g de cocaína pros playboys que se divertem com o produto que meninas de 15 anos esconderam na vagina pra ter arroz e feijão no fogão. Eu quase fui baleado por fuzil mais de 30 vezes, se não fosse a porra do vício que me tornou sub-humano, a ponto dos porcos fardados acharem que uma bala valia mais que minha vida imunda.
Eu poderia não estar escrevendo agora, se as balas não tivessem passado de raspão, se eu não tivesse corrido o suficiente, se eu não soubesse me esconder, ou se eu não tivesse me dado a oportunidade de mudar, onde o "quase" não existe.

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